Intelectuais com status de celebridade e língua
afiada, que dominam a ciência de ponta e não perdem a oportunidade de
ridicularizar a crença em Deus com tiradas que viram memes. A descrição bate
com a de figuras do século XXI, como o físico Stephen Hawking ou o biólogo
Richard Dawkins, mas também vale para pensadores que já estavam na ativa uns 2500
anos antes de Cristo.
Pelo visto, quando o assunto é o ateísmo militante,
quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas. Essa talvez seja a
principal mensagem de "Battling the
Gods: Atheism in the Ancient World" (Lutando contra os Deuses: Ateísmo no Mundo Antigo), novo livro do
historiador britânico Tim Whitmarsh.
Professor de cultura grega da Universidade de
Cambridge, Whitmarsh resolveu recuperar a longa tradição de ceticismo em
relação à religião do antigo Mediterrâneo, que parece ter surgido com os
primeiros filósofos da Grécia, a partir de 600 a.C., e só desapareceu quase mil
anos mais tarde, quando o cristianismo virou a religião oficial do Império
Romano, em 380 d.C.
Para o especialista de Cambridge, a análise da obra
desses pensadores demonstra que a descrença não é um fenômeno recente na
história ocidental. Em vez de ter surgido apenas com o Iluminismo, há
"meros" 200 anos, o ateísmo seria uma opção possível em qualquer
ambiente onde houvesse alguma liberdade de pensamento.
O historiador argumenta que a Grécia antiga era um
ambiente desse tipo justamente por causa de sua natureza algo caótica e
descentralizada.
Em vez de ser uma nação unificada, como a Grécia de
hoje, o território helênico estava dividido em centenas de cidades-Estado
modestas. Sem governo central, cada cidade era livre para ter suas próprias
formas de culto aos deuses, com inúmeras divindades e sacerdotes sem grande
poder político. Em resumo, seria impensável o surgimento de uma
"Inquisição" helênica.
Os gregos também não tinham um equivalente da
Bíblia hebraica. A analogia mais próxima eram os textos épicos do poeta Homero,
que eram admirados como literatura e manual de conduta aristocrática, mas
retratavam deuses muito parecidos com mortais: briguentos, ciumentos e com
poderes limitados, apesar de imortais.
Conforme várias das cidades gregas foram crescendo
economicamente e ficando culturalmente sofisticadas, por meio do comércio com o
Egito e o Oriente Médio, surgiram pensadores que estão entre os primeiros do
mundo a tentar explicar os fenômenos da natureza e a origem do Universo de maneira
racional, sem recorrer à ação divina.
Apesar de não serem muito afeitos a fazer
experimentos para testar suas hipóteses, tais filósofos podem ser considerados
precursores da ciência moderna - um de seus "chutes" mais bem dados é
a ideia de que a matéria do Cosmos é composta de átomos.
Alguns desses sujeitos até falavam de forma vaga
numa Inteligência cósmica ou Deus único que teria ordenado o Universo de
maneira racional, mas Whitmarsh argumenta que, em muitos casos, essas vagas
referências a divindades parecem metáforas que, na verdade, descrevem um
princípio cósmico impessoal. De qualquer modo, eles não poupavam críticas à
crença nos deuses gregos, como Zeus, Atena e Afrodite, considerando que as
histórias sobre seus casos de amor e brigas eram ridículas.
Ideias ousadas contra a religião tradicional teriam
ganhado fôlego ainda maior com o surgimento da democracia em Atenas, por volta
de 500 a.C. A liberdade política e de expressão na cidade mais famosa da Grécia
- todo cidadão podia participar diretamente da votação de leis e do julgamento
de crimes, por exemplo - criou uma cultura essencialmente laica, e o ateísmo
passou a ser tema até de comédias, como as de Aristófanes.
Em sua obra "Os Cavaleiros" (encenada em 424 a.C.), dois escravos conversam
justamente sobre a falta de fé. "Tu
acreditas mesmo em deuses?", diz um deles. "Claro", responde o outro, "a prova de que eles existem é que fui amaldiçoado por eles".
Nas décadas que se seguiram, os questionamentos
contra a religião se tornaram elementos importantes no surgimento de duas
correntes filosóficas que acabaram virando meros adjetivos na nossa linguagem
de hoje, os céticos (que duvidavam da possibilidade de comprovar qualquer
afirmação, inclusive as feitas sobre supostos deuses) e os cínicos (a palavra
vem do termo grego para "cão", porque eles defendiam uma vida
totalmente "natural", sem as restrições impostas pelos hábitos
sociais - como a vida de um cachorro, portanto).
Embora vários dos ateus da Antiguidade tenham sido
criticados e até processados, Whitmarsh diz que raramente eles sofriam
consequências sérias porque a religião dos gregos e romanos valorizava
principalmente os rituais (sacrifícios de animais aos deuses, por exemplo) e
não se preocupava tanto com o que as crenças das pessoas. Como a maioria dos
ateus não defendia que se interrompessem os sacrifícios, por exemplo, eram
deixados em relativa paz.
A coisa teria mudado de figura com a ascensão do
cristianismo, diz o pesquisador - a ideia de que uma única crença era a verdade
absoluta pode ter aberto caminho para a perseguição aos descrentes.
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