Muitos turistas que
vão para a Flórida procuram o estado americano por causa de um castelo: o da Cinderela, na Disney World.
O lugar, como tudo ao redor, não tem nada de original. É falso como uma nota de
três dólares. Mas no mesmo estado existe um monastério medieval construído no
século XII. Ele, sim, é de verdade, ainda que esteja a mais de 7 mil km. de
seu terreno original, na Espanha. O que ele faz ali e por que veio de tão
longe?
Em 1141, Alfonso VII, rei de
León, fundou o Monastério de Santa María la Real, em Sacramenia, perto de
Segóvia, no centro do que hoje é a Espanha. Na época, a península Ibérica
reunia vários reinos, cristãos e muçulmanos, que ora brigavam, ora se aliavam.
O monastério era uma gentileza à ordem dos cistercienses, fundada poucos anos
antes, em 1098, na França. Os monges da ordem tratam o trabalho como um caminho
para encontrar Deus. São pródigos em arquitetura - e também na fabricação de
vinho.
Outra característica dos
cistercienses, além do hábito branco, é a reclusão. Os monges falam pouquíssimo
e têm raros contatos com o mundo exterior aos monastérios onde vivem. "Eles buscavam uma vida de contemplação,
observação e reclusão", explica o professor Edin Abumansur, da
pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-SP. Pois, enquanto os religiosos
contemplavam e observavam, o mundo do lado de fora passava por rápidas
transformações. O reino da Espanha começou a tomar forma no século XV, com o
casamento entre Fernando de Aragão e Isabel de Castela - e com a expulsão dos
muçulmanos de Granada em 1492.
A Espanha unificada, católica e conservadora,
deu paz aos cistercienses durante 700 anos. Até que, em 1833, chegou ao trono
outra Isabel, de apenas três anos - em um período que dividiu o país. A Espanha
acabara de sofrer o trauma da Guerra Napoleônica - o país foi governado por
José Bonaparte, irmão mais velho de Napoleão, entre 1808 e 1814, e entre as
forças políticas que emergiram havia uma forte corrente anticlerical. "As associações entre Igreja e Estado haviam
sido abandonadas e, no esforço de restauração da monarquia, após o domínio de
Napoleão Bonaparte, os liberais progressistas e moderados buscavam toda a
riqueza do país, incluindo a das ordens religiosas, da mesma forma que
aconteceu na Revolução Francesa", afirma Álvaro Allegrette, professor
do curso de História da PUC-SP.
O primeiro-ministro Juan Álvarez
Mendizábal assinou uma série de decretos entre 1835 e 1837 conhecidos como
Confiscos Eclesiásticos. Mendizábal desapropriou e estatizou uma grande
quantidade de monastérios e igrejas - um deles, o monastério cisterciense Santa
María la Real, que virou silo para grãos e abrigo de gado.
Menos de um século depois de seu
uso agropecuário, em 1925, o monastério foi vendido para o americano William
Randolph Hearst, o magnata das comunicações que inspirou Cidadão Kane, de Orson Welles. "Hearst comprou aos pedaços ou por inteiro palácios, abadias, conventos
europeus, desmontando-os e numerando-os tijolo por tijolo, despachando-os
através do oceano e reconstruindo-os sobre o monte encantado, em meio a animais
selvagens em estado natural", escreveu o filósofo italiano Umberto Eco
em Viagem na Irrealidade Cotidiana, um ensaio em que discute a mania americana
de criar história com símbolos alheios, falando sobre a Xanadu que Hearst
construiu como sua casa, na Califórnia.
Mas o monastério espanhol teve
outro destino. E a culpa foi da palha. Uma equipe foi contratada para desmontar
os claustros e o refeitório do monastério, além da sala capitular, uma espécie
de salão de leitura. Pedra por pedra, as estruturas foram numeradas. No final,
havia onze mil peças de um gigantesco quebra-cabeças em 3D, em caixotes de
madeira forrados com palha, que foram despachados para os EUA (a abadia ficou
em Sacramenia). Quando o barco se aproximou do porto de Nova York, funcionários
do departamento de agricultura americano barraram a encomenda. Temiam que a
palha estivesse contaminada com febre aftosa. O carregamento foi para uma
quarentena. Nesse meio tempo, as finanças de Hearst degringolaram. Resultado:
as pedras passaram 26 anos armazenadas em um galpão, no Brooklyn. Hearst morreu
em 1951 sem ver o monastério reerguido.
No ano seguinte, as peças foram a
leilão e acabaram arrematadas por Raymond Moss e William Edgemon, que
resolveram levar o tesouro para Miami Beach, na Flórida. A reconstrução só
acabou em 1964, mas o tempo foi cruel com as pedras espanholas. Algumas
perderam a numeração, ninguém foi capaz de encontrar as instruções de
reconstrução e a remontagem se transformou em pesadelo: demorou um ano e meio e
custou 1,5 milhão de dólares. Até hoje não se sabe a localização correta de
algumas peças. Elas simplesmente sobraram.
Na Espanha, o mosteiro era católico.
Ao viajar da península Ibérica para a península da Flórida, cruzou uma linha
importante dentro do cristianismo: nos EUA, tornou-se um templo religioso
episcopal, a vertente americana da Igreja Anglicana. "Temos que avisar que casamentos católicos não são permitidos em nossa
capela. Mas isso é uma restrição da Igreja Católica, e não da Igreja Episcopal",
explica Tania Witten, organizadora de eventos do mosteiro. Personagem da
"irrealidade cotidiana" americana, o monastério virou parte da
paisagem e, para muita gente, é o edifício mais antigo das Américas (claro,
levando em conta o ano de sua construção na Espanha). "Ele não é mais um tesouro medieval",
diz o professor Edin Abumansur. "O
que fica é um empréstimo de memória."
Nenhum comentário:
Postar um comentário