22 de outubro de 2014

O monastério medieval que foi parar nos Estados Unidos

Muitos turistas que vão para a Flórida procuram o estado americano por causa de um castelo: o da Cinderela, na Disney World. O lugar, como tudo ao redor, não tem nada de original. É falso como uma nota de três dólares. Mas no mesmo estado existe um monastério medieval construído no século XII. Ele, sim, é de verdade, ainda que esteja a mais de 7 mil km. de seu terreno original, na Espanha. O que ele faz ali e por que veio de tão longe?

Em 1141, Alfonso VII, rei de León, fundou o Monastério de Santa María la Real, em Sacramenia, perto de Segóvia, no centro do que hoje é a Espanha. Na época, a península Ibérica reunia vários reinos, cristãos e muçulmanos, que ora brigavam, ora se aliavam. O monastério era uma gentileza à ordem dos cistercienses, fundada poucos anos antes, em 1098, na França. Os monges da ordem tratam o trabalho como um caminho para encontrar Deus. São pródigos em arquitetura - e também na fabricação de vinho.

Outra característica dos cistercienses, além do hábito branco, é a reclusão. Os monges falam pouquíssimo e têm raros contatos com o mundo exterior aos monastérios onde vivem. "Eles buscavam uma vida de contemplação, observação e reclusão", explica o professor Edin Abumansur, da pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-SP. Pois, enquanto os religiosos contemplavam e observavam, o mundo do lado de fora passava por rápidas transformações. O reino da Espanha começou a tomar forma no século XV, com o casamento entre Fernando de Aragão e Isabel de Castela - e com a expulsão dos muçulmanos de Granada em 1492. 

A Espanha unificada, católica e conservadora, deu paz aos cistercienses durante 700 anos. Até que, em 1833, chegou ao trono outra Isabel, de apenas três anos - em um período que dividiu o país. A Espanha acabara de sofrer o trauma da Guerra Napoleônica - o país foi governado por José Bonaparte, irmão mais velho de Napoleão, entre 1808 e 1814, e entre as forças políticas que emergiram havia uma forte corrente anticlerical. "As associações entre Igreja e Estado haviam sido abandonadas e, no esforço de restauração da monarquia, após o domínio de Napoleão Bonaparte, os liberais progressistas e moderados buscavam toda a riqueza do país, incluindo a das ordens religiosas, da mesma forma que aconteceu na Revolução Francesa", afirma Álvaro Allegrette, professor do curso de História da PUC-SP.

O primeiro-ministro Juan Álvarez Mendizábal assinou uma série de decretos entre 1835 e 1837 conhecidos como Confiscos Eclesiásticos. Mendizábal desapropriou e estatizou uma grande quantidade de monastérios e igrejas - um deles, o monastério cisterciense Santa María la Real, que virou silo para grãos e abrigo de gado.

Menos de um século depois de seu uso agropecuário, em 1925, o monastério foi vendido para o americano William Randolph Hearst, o magnata das comunicações que inspirou Cidadão Kane, de Orson Welles. "Hearst comprou aos pedaços ou por inteiro palácios, abadias, conventos europeus, desmontando-os e numerando-os tijolo por tijolo, despachando-os através do oceano e reconstruindo-os sobre o monte encantado, em meio a animais selvagens em estado natural", escreveu o filósofo italiano Umberto Eco em Viagem na Irrealidade Cotidiana, um ensaio em que discute a mania americana de criar história com símbolos alheios, falando sobre a Xanadu que Hearst construiu como sua casa, na Califórnia.

Mas o monastério espanhol teve outro destino. E a culpa foi da palha. Uma equipe foi contratada para desmontar os claustros e o refeitório do monastério, além da sala capitular, uma espécie de salão de leitura. Pedra por pedra, as estruturas foram numeradas. No final, havia onze mil peças de um gigantesco quebra-cabeças em 3D, em caixotes de madeira forrados com palha, que foram despachados para os EUA (a abadia ficou em Sacramenia). Quando o barco se aproximou do porto de Nova York, funcionários do departamento de agricultura americano barraram a encomenda. Temiam que a palha estivesse contaminada com febre aftosa. O carregamento foi para uma quarentena. Nesse meio tempo, as finanças de Hearst degringolaram. Resultado: as pedras passaram 26 anos armazenadas em um galpão, no Brooklyn. Hearst morreu em 1951 sem ver o monastério reerguido.

No ano seguinte, as peças foram a leilão e acabaram arrematadas por Raymond Moss e William Edgemon, que resolveram levar o tesouro para Miami Beach, na Flórida. A reconstrução só acabou em 1964, mas o tempo foi cruel com as pedras espanholas. Algumas perderam a numeração, ninguém foi capaz de encontrar as instruções de reconstrução e a remontagem se transformou em pesadelo: demorou um ano e meio e custou 1,5 milhão de dólares. Até hoje não se sabe a localização correta de algumas peças. Elas simplesmente sobraram. 

Na Espanha, o mosteiro era católico. Ao viajar da península Ibérica para a península da Flórida, cruzou uma linha importante dentro do cristianismo: nos EUA, tornou-se um templo religioso episcopal, a vertente americana da Igreja Anglicana. "Temos que avisar que casamentos católicos não são permitidos em nossa capela. Mas isso é uma restrição da Igreja Católica, e não da Igreja Episcopal", explica Tania Witten, organizadora de eventos do mosteiro. Personagem da "irrealidade cotidiana" americana, o monastério virou parte da paisagem e, para muita gente, é o edifício mais antigo das Américas (claro, levando em conta o ano de sua construção na Espanha). "Ele não é mais um tesouro medieval", diz o professor Edin Abumansur. "O que fica é um empréstimo de memória."

Nenhum comentário:

Postar um comentário