14 de março de 2014

Os emblemas medievais

Ao contemplar uma bandeira, quem sabe dizer ao certo o que se esconde por trás de suas cores e figuras? Carregada de significado, ela é uma representação gráfica de dinastias, instituições, territórios ou ideais que desperta associações afetivas intensas: à ideia de pátria, nação, Estado, ideologia. E, claro, a certa noção de história, sobretudo de história nacional.

 Há um ramo da História que se dedica especificamente ao estudo desses símbolos: a heráldica. Foi um conhecimento criado na Idade Média, em uma sociedade quase totalmente iletrada, em que pessoas e instituições recorriam sobretudo a sinais gráficos para se autorrepresentarem e para comunicarem a sua identidade. Tais sinais surgiram nos campos de batalha, onde os combatentes, escondidos por pesadas armaduras, precisavam ostentar símbolos que os identificassem nos confrontos. Chamados de armas ou brasões, esses símbolos eram pintados nos escudos, nos capacetes, nas vestes, nas bandeiras, em todos os lugares em que pudessem ser avistados por amigos e inimigos.

A origem militar da heráldica ditou algumas das suas características essenciais. Tinham de ser símbolos simples, fáceis de reconhecer. Daí a simplicidade dos emblemas, a quantidade reduzida e a estilização das figuras, o acentuado contraste cromático e a limitação do número de cores possíveis (só sete: prata, ouro, vermelho, azul, verde, negro e púrpura). As razões para a escolha destas cores são complexas e estão relacionadas com heranças culturais por vezes bastante remotas e até com questões tecnológicas, levando-se em conta existência, custo e qualidade dos corantes. Construiu-se um sistema complexo, mas coerente, cuja organização ficou a cargo de especialistas a serviço de reis e de grandes senhores: os oficiais de armas. Entre suas funções, estavam a organização de cerimônias da corte (incluindo, em Portugal, a aclamação solene dos reis), a realização de festas e de torneios (nos quais eram simultaneamente comentadores, fiscais e juízes), a condução de embaixadas oficiais ou de missões secretas junto a potências estrangeiras. Em suma, eram um misto de chefes de protocolo, mestres-salas, diplomatas, espiões, jornalistas, juízes e locutores esportivos. Verdadeiros especialistas medievais em imagem e comunicação.

Os oficiais de armas reuniam os escudos usados por cavaleiros e instituições, pintando-os em manuscritos chamados armoriais. Eles também trataram de estabelecer o conjunto de regras que deviam presidir a escolha das armas, seu uso, suas formas de alteração e de transmissão. Assim surgiram os tratados de armaria.

Em Portugal, a heráldica surgiu na segunda metade do século XII, quase ao mesmo tempo em que o reino independente era formado por D. Afonso Henriques (c. 1109-1185). Os primeiros reis criaram armas para sua identificação: num fundo de prata, dispuseram cinco pequenos escudos (escudetes) de azul em cruz, sendo cada escudete carregado de rodelas de prata (besantes). Em referência ao número de cinco e à disposição em cruz, essas armas ficaram conhecidas como quinas.

Além de exibidas nas vestes civis e militares, as quinas passaram a identificar simbolicamente, em bandeiras, a “presença” do soberano nos castelos, nos palácios, nas cidades ou nos navios que lhe pertenciam. Por extensão, não eram apenas as armas do rei em exercício, mas de todos os que sucediam uns aos outros no trono, ou seja, da dinastia régia e, de forma ainda mais abstrata, do próprio reino.

A tradição desde cedo atribuiu um simbolismo messiânico a essas armas, relacionando-as com a batalha de Ourique, travada por D. Afonso Henriques em 1139. Na véspera do decisivo confronto contra um exército muçulmano muito mais poderoso, o primeiro rei de Portugal teria ficado de vigília, aparecendo-lhe então Cristo a garantir a vitória e a fundação de um novo reino. As quinas teriam sido dadas a D. Afonso em sinal dessa aliança divina, por lembrarem a cruz onde Cristo padecera sua Paixão. A batalha do dia seguinte foi vencida e os soldados aclamaram D. Afonso como rei. Assim nascia, miticamente, o reino de Portugal, em indissolúvel associação com as suas armas.

Quando o Brasil foi descoberto pelos portugueses em 1500, era importante apropriar-se simbolicamente do novo território em nome de Portugal. Para isso, era preciso disseminar a representação das armas reais: foram implantados padrões de pedra em pontos estratégicos, bandeiras flutuavam sobre fortes e povoações, todos aqueles que exerciam algum tipo de autoridade usavam objetos decorados com as quinas. As armas reais portuguesas estavam nas moedas em circulação, nos pelourinhos onde se exercia a justiça, nas fachadas dos edifícios legislativos.

Mas os reis da dinastia de Avis queriam exprimir mais do que a noção abstrata do reino. Desde o princípio do século XV, também faziam representar o seu exercício pessoal do poder. Para esse efeito, completavam as armas reais com um símbolo próprio, individual, a que se chamava empresa. No caso do rei D. Manuel – que governou na época do Descobrimento do Brasil – a sua empresa era a esfera armilar, uma representação do universo, com a Terra no centro e círculos concêntricos em redor, unidos pela linha do zodíaco. Exprimia a ideia de um império que se estendia pelo mundo afora.

Às armas reais e à esfera armilar juntou-se ainda um terceiro símbolo: a cruz da Ordem Militar de Cristo, de que D. Manuel era governador. Assim se completava a mensagem simbólica de apropriação das terras descobertas e conquistadas pelos portugueses – em nome da Coroa, do rei D. Manuel e da Cristandade. Essa tríade de símbolos reais (quinas, esfera, cruz) foi implantada em todos os recantos do mundo a que os portugueses chegaram.

Na cartografia, o Brasil era também identificado por símbolos que procuravam caracterizar aquele território, inspirando-se nos vários nomes que lhe foram dados: papagaios (em referência à Terra dos Papagaios), árvores (alusivas ao pau-brasil) ou um cruzeiro (pela denominação de Terra de Santa Cruz). Durante muito tempo assistiu-se a uma luta entre o símbolo da árvore e o da cruz – o que correspondia à hesitação entre os dois nomes de batismo da nova terra. O abandono da cruz em favor do pau-brasil foi mal visto por representar a troca de um símbolo sagrado por um mero objeto comercial – e ainda por cima etimologicamente relacionado com o vermelho, brasil, cor de conotações infernais.

Na segunda metade do século XVII, o oficial de armas Francisco Coelho registrou no seu armorial Thezouro da Nobreza, hoje conservado no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, as primeiras armas atribuídas ao Estado do Brasil: um escudo com uma árvore encimada por uma cruz. O símbolo pagão tornava-se sinal divino. As armas da árvore-cruz, contudo, não foram usadas pelas autoridades oficiais, que preferiram continuar recorrendo à tríade quina-esfera-cruz.

A permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro, a partir de 1808, veio alterar a situação. Depois da morte da rainha D. Maria I, em 1816, D. João VI decidiu elevar o Brasil à categoria de reino, em paridade com Portugal e com os Algarves de aquém e de além-mar. Com essa alteração do seu estatuto político, o Brasil, enfim, foi dotado de armas próprias em 13 de maio daquele ano. O novo reino era simbolizado por um escudo azul, com uma esfera armilar de ouro.

Ao mesmo tempo, inspirando-se no modelo britânico, D. João VI articulava os três reinos numa união dinástica. O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves recebeu de imediato expressão heráldica: Portugal representado pelo escudo das quinas; Algarves pela bordadura de castelos, que as rodeavam; e o Brasil por um escudo redondo, com as suas armas próprias, ou seja, um escudo redondo azul com uma esfera armilar de ouro, colocado por baixo do outro. Sobre o conjunto destes três elementos, era representada a coroa real.

O resultado era expressivo: o velho conjunto das armas reais luso-algarvias assentava sobre o escudo brasileiro. O papel do Brasil, portanto, era interpretado como um sustentáculo da monarquia portuguesa renovada. Mas tudo sob a coroa real, pois era a dinastia que conferia unidade ao conjunto.


Estas armas foram usadas no Brasil até a Independência, em 1822. Em Portugal, vigoraram até a morte de D. João VI, em 1826, mas continuaram influenciando a emblemática do Império, e até mesmo a da República do Brasil. Sinal de que os simbolismos originais – cunhados séculos antes – já se perdiam de vista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário