Ao contemplar uma bandeira, quem
sabe dizer ao certo o que se esconde por trás de suas cores e figuras?
Carregada de significado, ela é uma representação gráfica de dinastias,
instituições, territórios ou ideais que desperta associações afetivas intensas:
à ideia de pátria, nação, Estado, ideologia. E, claro, a certa noção de
história, sobretudo de história nacional.
A origem militar da heráldica
ditou algumas das suas características essenciais. Tinham de ser símbolos
simples, fáceis de reconhecer. Daí a simplicidade dos emblemas, a quantidade
reduzida e a estilização das figuras, o acentuado contraste cromático e a
limitação do número de cores possíveis (só sete: prata, ouro, vermelho, azul,
verde, negro e púrpura). As razões para a escolha destas cores são complexas e
estão relacionadas com heranças culturais por vezes bastante remotas e até com
questões tecnológicas, levando-se em conta existência, custo e qualidade dos
corantes. Construiu-se um sistema complexo, mas coerente, cuja organização
ficou a cargo de especialistas a serviço de reis e de grandes senhores: os
oficiais de armas. Entre suas funções, estavam a organização de cerimônias da
corte (incluindo, em Portugal, a aclamação solene dos reis), a realização de
festas e de torneios (nos quais eram simultaneamente comentadores, fiscais e
juízes), a condução de embaixadas oficiais ou de missões secretas junto a
potências estrangeiras. Em suma, eram um misto de chefes de protocolo,
mestres-salas, diplomatas, espiões, jornalistas, juízes e locutores esportivos.
Verdadeiros especialistas medievais em imagem e comunicação.
Os oficiais de armas reuniam os
escudos usados por cavaleiros e instituições, pintando-os em manuscritos
chamados armoriais. Eles também trataram de estabelecer o conjunto de regras
que deviam presidir a escolha das armas, seu uso, suas formas de alteração e de
transmissão. Assim surgiram os tratados de armaria.
Em Portugal, a heráldica surgiu
na segunda metade do século XII, quase ao mesmo tempo em que o reino
independente era formado por D. Afonso Henriques (c. 1109-1185). Os primeiros
reis criaram armas para sua identificação: num fundo de prata, dispuseram cinco
pequenos escudos (escudetes) de azul em cruz, sendo cada escudete carregado de
rodelas de prata (besantes). Em referência ao número de cinco e à disposição em
cruz, essas armas ficaram conhecidas como quinas.
Além de exibidas nas vestes civis
e militares, as quinas passaram a identificar simbolicamente, em bandeiras, a
“presença” do soberano nos castelos, nos palácios, nas cidades ou nos navios
que lhe pertenciam. Por extensão, não eram apenas as armas do rei em exercício,
mas de todos os que sucediam uns aos outros no trono, ou seja, da dinastia
régia e, de forma ainda mais abstrata, do próprio reino.
A tradição desde cedo atribuiu um
simbolismo messiânico a essas armas, relacionando-as com a batalha de Ourique,
travada por D. Afonso Henriques em 1139. Na véspera do decisivo confronto
contra um exército muçulmano muito mais poderoso, o primeiro rei de Portugal
teria ficado de vigília, aparecendo-lhe então Cristo a garantir a vitória e a
fundação de um novo reino. As quinas teriam sido dadas a D. Afonso em sinal
dessa aliança divina, por lembrarem a cruz onde Cristo padecera sua Paixão. A
batalha do dia seguinte foi vencida e os soldados aclamaram D. Afonso como rei.
Assim nascia, miticamente, o reino de Portugal, em indissolúvel associação com
as suas armas.
Quando o Brasil foi descoberto
pelos portugueses em 1500, era importante apropriar-se simbolicamente do novo
território em nome de Portugal. Para isso, era preciso disseminar a
representação das armas reais: foram implantados padrões de pedra em pontos
estratégicos, bandeiras flutuavam sobre fortes e povoações, todos aqueles que
exerciam algum tipo de autoridade usavam objetos decorados com as quinas. As
armas reais portuguesas estavam nas moedas em circulação, nos pelourinhos onde
se exercia a justiça, nas fachadas dos edifícios legislativos.
Mas os reis da dinastia de Avis queriam
exprimir mais do que a noção abstrata do reino. Desde o princípio do século XV,
também faziam representar o seu exercício pessoal do poder. Para esse efeito,
completavam as armas reais com um símbolo próprio, individual, a que se chamava
empresa. No caso do rei D. Manuel – que governou na época do Descobrimento do
Brasil – a sua empresa era a esfera armilar, uma representação do universo, com
a Terra no centro e círculos concêntricos em redor, unidos pela linha do
zodíaco. Exprimia a ideia de um império que se estendia pelo mundo afora.
Às armas reais e à esfera armilar
juntou-se ainda um terceiro símbolo: a cruz da Ordem Militar de Cristo, de que
D. Manuel era governador. Assim se completava a mensagem simbólica de
apropriação das terras descobertas e conquistadas pelos portugueses – em nome
da Coroa, do rei D. Manuel e da Cristandade. Essa tríade de símbolos reais
(quinas, esfera, cruz) foi implantada em todos os recantos do mundo a que os
portugueses chegaram.
Na cartografia, o Brasil era
também identificado por símbolos que procuravam caracterizar aquele território,
inspirando-se nos vários nomes que lhe foram dados: papagaios (em referência à
Terra dos Papagaios), árvores (alusivas ao pau-brasil) ou um cruzeiro (pela
denominação de Terra de Santa Cruz). Durante muito tempo assistiu-se a uma luta
entre o símbolo da árvore e o da cruz – o que correspondia à hesitação entre os
dois nomes de batismo da nova terra. O abandono da cruz em favor do pau-brasil
foi mal visto por representar a troca de um símbolo sagrado por um mero objeto
comercial – e ainda por cima etimologicamente relacionado com o vermelho,
brasil, cor de conotações infernais.
Na segunda metade do século XVII,
o oficial de armas Francisco Coelho registrou no seu armorial Thezouro da Nobreza,
hoje conservado no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, as primeiras armas
atribuídas ao Estado do Brasil: um escudo com uma árvore encimada por uma cruz.
O símbolo pagão tornava-se sinal divino. As armas da árvore-cruz, contudo, não
foram usadas pelas autoridades oficiais, que preferiram continuar recorrendo à
tríade quina-esfera-cruz.
A permanência da corte portuguesa
no Rio de Janeiro, a partir de 1808, veio alterar a situação. Depois da morte
da rainha D. Maria I, em 1816, D. João VI decidiu elevar o Brasil à categoria
de reino, em paridade com Portugal e com os Algarves de aquém e de além-mar.
Com essa alteração do seu estatuto político, o Brasil, enfim, foi dotado de
armas próprias em 13 de maio daquele ano. O novo reino era simbolizado por um escudo
azul, com uma esfera armilar de ouro.
Ao mesmo tempo, inspirando-se no
modelo britânico, D. João VI articulava os três reinos numa união dinástica. O
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves recebeu de imediato expressão
heráldica: Portugal representado pelo escudo das quinas; Algarves pela
bordadura de castelos, que as rodeavam; e o Brasil por um escudo redondo, com
as suas armas próprias, ou seja, um escudo redondo azul com uma esfera armilar
de ouro, colocado por baixo do outro. Sobre o conjunto destes três elementos,
era representada a coroa real.
O resultado era expressivo: o
velho conjunto das armas reais luso-algarvias assentava sobre o escudo
brasileiro. O papel do Brasil, portanto, era interpretado como um sustentáculo
da monarquia portuguesa renovada. Mas tudo sob a coroa real, pois era a
dinastia que conferia unidade ao conjunto.
Estas armas foram usadas no
Brasil até a Independência, em 1822. Em Portugal, vigoraram até a morte de D.
João VI, em 1826, mas continuaram influenciando a emblemática do Império, e até
mesmo a da República do Brasil. Sinal de que os simbolismos originais –
cunhados séculos antes – já se perdiam de vista.
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